terça-feira, 1 de junho de 2010

Tragédia cansativa

Era jovem, impávido, o mundo nas mãos, pelo menos assim pensava. Na escola não havia destaque, ou até havia, negativo. Anos que se desperdiçaram, não ficava reprovado por causa da aprovação automática – sua “tábua de salvação”. Em outros tempos, estudaria com crianças bem mais jovens que ele – perdão, ele, claro, pode se julgar tudo, menos criança. Ao contrário. É esperto. Muito esperto.
Arruma uma galerinha, são seus grandes amigos, melhores amigos, neles confia decididamente.
Porque um começou, porque outro chamou e disse que era bom, arrisca a primeira entorpecente experiência, gosta, aprova, a vida passa a girar em torno disso. De qualquer modo, ele é o cara, quando quiser, pára. Quando tentar parar, porém, não vai conseguir.
Chega um momento, não distante, desiste de se enganar e abandona definitivamente as aulas.
Dia inteiro com a mesma galera, nenhum trabalha, poucos estudam. Quando o fazem, são em escolas absolutamente improfícuas destinadas a conformar futuros também demasiado improfícuos.
E aquela repetitiva tragédia começa a ocorrer: brigas com os parentes (refúgio na galera), ausência de perspectivas, falta de dinheiro para alimentar o vício, sumiço de pertences domésticos, furto, roubo, roubo a mão armada.
Como os elos da corrente se insinuam pelos seus pulsos de maneira mais sutil do que se pode imaginar, quando menos se percebe já se está inarredavelmente enclausurado por uma realidade, que aí consegue compreender, lhe é asfixiante. Já é tarde.
Sente falta, sente muita necessidade do que se acostumou a tomar, a fumar, a injetar, a cheirar. É-lhe irresistível. E é verdade, ele não está mentindo agora.
Os grilhões lhe rodearam, ele sente isso, sabe, quando reflete mais detidamente, que está indo numa direção errada. Mas tudo o faz voltar para isto. É um ímã, um ímã que lhe faz gravitar em torno de uma atmosfera corrompida, um ar viciado que ele não consegue deixar de respirar.
Ao mesmo tempo em que ama utilizar o que o narcotiza, odeia a dependência em si. E para aliviar este ódio da necessidade, só lhe resta o caminho mais fácil. Quando sente a dependência, aquela necessidade, aquela ânsia insuportável, aquela fissura, como eles gostam de dizer, só lhe resta um caminho: aplacá-la com mais veneno. E depender dele cada vez mais, num maldito ciclo sem fim.
Cada vez mais íntimo de seu contexto, segue a tendência dos homens: prosseguir adiante. E ousa mais, e se droga mais, e deve mais dinheiro, e se arrisca mais, e furta mais, e rouba mais descaradamente, e tudo o mais.
Seu grupo se reduz, um ou outro consegue se livrar. Fracos, merdas, quase traidores pensa em dizer, mas não vai tão longe. Ficam fora de sua área de influência, somem, eles já não são nada pra ele, vitupera o passado de tê-los julgado seus amigos.

Há de se reconhecer: não é difícil encontrar o caminho que se leva ao abismo. Difícil é sair dele.
Mérito há muito para quem contemplou as trevas e se recusou a nelas fazer moradia. E outro tipo de mérito, menos inteligente e mais intenso, há para aquele que ali esteve e conseguiu se livrar da mancha que lhe incrustava os poros.

E toda a intrepidez, toda a força que julgava possuir, toda esperteza, vai desaparecer em instantes, efêmera, falsa, fogo-fátuo que é.
Vem o destino ao seu encontro, como um trem com seu peso descomunal e seu ruído infernal.
Aqueles parentes (chatos, é “óbvio!”) tentaram avisá-lo, tentaram alterar sua trajetória, tentaram resgatá-lo, dentro de suas limitações fizeram o possível. Chega um momento, porém, em que percebem que não há escapatória, começam a se proteger mais, tentam voltar a priorizar suas próprias vidas. Ainda há esperança, tentam puxá-lo de volta, mas são sempre decepções e decepções.
Foi tudo em vão, não pode haver salvação para quem não quer se salvar, tampouco ao menos deixar-se ser salvo.
Em algum momento, estes mesmos parentes desistiram, e no seu íntimo, eventualmente, até mesmo torceram para que o fado viesse estender as suas garras e lhes livrar do que obsedava a sua vida. E como bem sabiam os gregos, nem mesmo o mais poderoso dos deuses podia lutar contra o destino.
E então ele se apresenta.
Contra toda a esperteza, toda a audácia, toda a segurança que ele carregava em si, eis que surge um singelo motoqueiro, não se sabe se lhe dirige uma derradeira frase, a última que levaria para o lugar (sabe-se lá onde) que se destina: dá-lhe um tiro no pescoço, e tudo o mais escorre pelo bueiro da ignorância.

O que pessoalmente mais me entristece não é nem tanto observar o tétrico fato da morte, do desperdício, em si. É, sim, vendo-o, me lembrar de outros tantos e tantos, similares, desesperadamente similares, e questionar para o meu imo: ¿Quantas vezes mais haverá esta cena de se repetir?
Parece uma burlesca novela qualquer, em que a história é sempre repetida, mudando apenas os personagens e um ou outro detalhe. Neste, por exemplo, novidade sádica que se destaca, o tiro ter atingido o pescoço.

É uma lástima. Uma lástima que cansa e machuca.

Um comentário:

Dr Jekyll VS Mrs Hyde disse...

a lastima meu caro, veio antes do nascimento deste personagem