terça-feira, 30 de novembro de 2010

O barulho ensurdecedor

Na Declaração Universal dos Direitos do Homem, logo em seu primeiro artigo vemos escrito:
Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos”.
Infelizmente, não é verdade nem uma coisa nem outra.
Como bem disse Jean Jacques Rousseau, logo no início de seu livro mais famoso, O contrato social: “o homem nasceu livre, e em toda parte se encontra sob ferros”.
Já quanto a igualdade em dignidade e direitos, cá estamos com outra quimera. Só vemos mais e mais desigualdade, mais e mais concentração de renda no mundo. Na década de 60, os 20% mais aquinhoados da humanidade eram trinta vezes mais ricos que os 20% mais humildes; na década de 90, a diferença entre os ricos e os desamparados havia subido para o dobro, sessenta vezes. Nos EUA a coisa é ainda mais grave. O 1% mais abastado possuía 9% da renda nacional nos anos 70. Hoje possuem 23,5% da renda total (e o Império ainda se assusta com a crise econômica que enfrenta).
Todo este grave quadro de injustiça social começa, para aquele que acabou de nascer, com a herança que receberá a partir daquele momento. No Brasil, bem como em diversas partes do mundo, o riquinho recebe o que há de melhor. Para o humilde, a escória que lhe cabe. Eles são iguais em dignidade e direitos, mas um terá um belo plano de saúde, o outro terá as filas e o atendimento precário do SUS. Um andará de carro com ar condicionado, o outro de ônibus lotado. Um herdará sua casa própria, o outro morará de aluguel, ou construirá sua residência numa favela ou periferia qualquer. Um estudará nas melhores instituições de ensino, o outro terá a sucata das escolas públicas como legado. Um estudará numa universidade federal (!), o outro sequer concluirá seus estudos. Um vai casar na igreja, vai ter festa, tudo certinho, o outro vai se “juntar” com sua mulher. Um vai ter um estritamente planejado casal de filhos com sua esposa, o outro vai ter quatro filhos de três mulheres diferentes, todos concebidos aleatoriamente. Os dois filhos premiados vão crescer e ter tudo aquilo que seu pai também teve. Os outros quatro também terão tudo aquilo que seu pai teve. Os dois primeiros vão ter bons empregos. Dos quatro últimos, um virará evangélico, uma trabalhará como atendente num shopping, um será motoboy, e um virará bandido e acabará sendo morto – pela polícia ou por seus comparsas.
No fim das contas, estes das famílias que tiveram tudo, não se darão conta de que possuem o que possuem não só por seus próprios méritos, mas simplesmente porque tiveram o acaso, o mero acaso de nascer em uma família com posses. Participaram de um jogo no qual já começaram vencedores. Não vão se tocar que diferentemente de outros, eles tiveram chances, puderam fazer escolhas, foram devidamente capacitados para obterem sucesso. E estes abastados, estes bons cristãos que toda semana vão a igreja pedir pelas suas almas e pela dos condenados, estes nascidos diferentes, estes herdeiros de oportunidades, estes com plano de saúde, boa (e gratuita) universidade, carro e casa própria, estes pequenos burgueses, do alto de sua pseudo-intelectualidade ainda terão a audácia de olhar para o programa bolsa-família com ódio, e com seu moralismo vazio bradar:
Isso é bolsa-esmola pra sustentar vagabundos!”.

Durma-se com um barulho desses.

P.S: já bem disseram que as duas substâncias mais comuns no universo são o hidrogênio e a estupidez. Não há como discordar – a não ser se descobrirem que o hidrogênio não é tão comum assim.


*: Clique aqui para ler a Declaração Universal dos Direitos do Homem.
**: Clique aqui para ler mais trechos de “O contrato social”, de Jean Jacques Rousseau.

Nenhum comentário: