O Brasil e o Equador são os únicos países da América do Sul em que ainda existe o alistamento militar obrigatório. Poderíamos gerar um interessante debate sobre o alistamento, e eu, de antemão, até sou favorável, desde que tivesse intenções absolutamente inversas às que possui hoje. Que os jovens fossem construir estradas, obrar, ir combater o desmatamento da Amazônia, enfim, qualquer tipo de ação que ajudasse na construção do ser humano e na evolução da sociedade, e não num lugar onde os animais podem dar vazão aos seus instintos mais sujos, onde a “hierarquia” subjuga qualquer tipo de noção de justiça, coerência e respeito, como ocorre nas forças armadas.
Como nem tudo na vida são flores, mas também não são só espinhos, de alguma coisa me serviu o alistamento.
É um caso até engraçado, já o contei a algumas pessoas. Durante a execução do alistamento, tínhamos que olhar para umas letras com um olho só. Beleza, antes de eu fechar um olho, estava vendo tranquilo. Quando tapei um dos olhos, não enxerguei mais nada. Foi um espanto para mim, eu não conseguia ver as letras que até então estavam claras. Até então eu não sabia da minha deficiência visual. O gendarme que me examinava, com uma paciência digna de Jó, e um tom de voz tão cálido e sedoso quanto uma mulher que se esguela com o marido pego no flagra, berrou:
- ¿Que letra é esta?
Eu não estava enxergando nada, só me concentrava mais, tentando compreender.
O cara berrou com mais intensidade:
- ¿Que letra é esta?
E eu, espantadíssimo, fazendo o possível pra ler, mas não conseguia. E o cara, tentando ser ouvido a quilômetros de distância:
- ¿Que letra é esta?
E eu:
- Letra D.
Sei lá que diabo de letra que era, ele estava pressionando demais, comecei a chutar. Ele:
- ¿Que letra é esta?
- S.
- ¿E esta? – sempre naquele tom carinhoso.
- M.
Ele falou pra eu tapar o outro olho. Enfim, quando mudei a vista, percebi que não tinha passado nem perto, havia errado clamorosamente todas as letras até então.
Pois bem, o alistamento como um todo foi uma experiência completamente desnecessária, excetuando por este achado.
E, depois, refletindo sobre o assunto, inferi (não careceu grande inteligência para fazê-lo) que o fato da perda da visão ocorrer de maneira progressiva, lenta, faz com que não nos apercebamos do processo de mudança. É como quando chegamos em um lugar novo, conseguimos visualizar de uma maneira muito mais fácil os equívocos ali contidos, diferente de quando já estamos acostumados, e meio que nos viciamos dos erros adquiridos ao longo do tempo.
Pois bem, escrevo este texto justamente por ter visto pessoas de quem gosto começarem um processo de “miopia progressiva” com a alma.
É uma pena, quando menos pensarem, já terão perdido completamente sua identidade, sua credibilidade, e deixarão de serem homens.
Quem os conhecer depois, já vai perceber de imediato todo o erro contido em suas atitudes, já vai chegar vendo a merda que lhe está defronte.
E quem já os conhecia como eu, não verá uma mudança drástica em suas atitudes, nada significativo do dia para a noite.
Porém, querendo ou não, sempre acontecerá um caso como o do alistamento, em que somos forçados a ver de uma maneira que comumente não enxergamos, um “divisor de águas”.
Quando este dia chegar, e ele vai chegar, os amigos ao redor se aperceberão do quanto estas pessoas mudaram. Passarão até a questionar se algum dia elas realmente foram dignas e coerentes do sentimento que nutrimos.
É um aviso.
E é uma lástima.
Um comentário:
Muito boa postagem.
É, muitas vezes, doloroso perceber que uma pessoa mudou tanto sem percebermos tal transformação. Sentimo-nos como diante de um estranho quando deparamo-nos com alguns amigos que não vemos a tempo.
Acontece.
Ótimo texto.
Visite: www.coletivopolvo.blogspot.com
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