quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Reminiscências

     Eu era criança (ou tinha mais aparência de sê-lo, já que tanto daquela época permaneceu). Não sei por qual motivo, houve uma discussão maternal e eu saíra de casa (mais tarde, por diversas vezes, viria a fazê-lo de modo mais intempestivo e duradouro). Sentei-me em uma esquina e a raiva infantil – aquela, tão inconsequente e sincera – transbordava de meus poros.
     Vem a mente que uma senhora passou com alguns membros de sua família (não consegui discernir quais, eu estava olhando para baixo e relembro-me cuidadosamente que não senti forças para levantar a cabeça e encará-los) e disse olha, que menino bonito. Naquele momento, com aquelas palavras cândidas sendo-me ditas em contraponto ao tumulto porque passava, pensei que, se tivesse de ir para sempre com aquela família, eu pelo menos teria uma riqueza para levar: meu relógio, que ostentava em meu esquálido braço. Era um pensamento infantil, evidentemente e, de fato, se havia alguma riqueza, não era o relógio. A riqueza poderia ser a pureza, poderia ser a vida inteira pela frente, poderia ser a sede interminável de aventuras, poderia ser a sensação de que os sonhos mais facilmente se realizariam. Perdi tudo pelo caminho – inclusive o relógio.

     Voltando ao olha, que menino bonito, relembro-me de outra oportunidade, ocorrida anos depois, em que, com uma tristeza obsedante sobre os ombros – oriunda de outra história torta que também ficou pelo caminho, mas não vem ao (a)caso –, fui tentar aliviar minha amargura tentando conquistar uma colega de escola. Além de aluna, ela era bolsista, atendente e, como não poderia deixar de ser dada a função que exercia, recebia diversas cantadas dos mancebos soltos (e dos comprometidos, claro) por aí. Fui bem convicto daquilo que desejava – a tristeza, incrivelmente, me deu forças – e ganhei o prêmio. Lá pelas tantas, esta menina me disse algo que me fez lembrar o olha, que menino bonito: disse-me que, se eu não era um Brad Pitt, ao menos dava pra passear comigo no shopping. Mais uma vez percebi que, além do relógio & otras cositas más, também havia perdido mais alguma coisa enquanto envelhecia.

     Dando sequência a esta história – já que vim até aqui, sigo em frente; como afirma o dito batido, se esta no inferno, abraça o capeta –, é que esta mesma menina, enquanto eu tentava trazê-la para meus domínios, disse-me algumas frases fortes, não conseguiria reproduzi-las fielmente (a cena do relógio, anterior a esta em mais de 15 anos, me vêm a mente com maior intensidade – provavelmente devido ao estado de ebulição em que me encontrava), mas ela disse de maneira bem vívida, bem enérgica, que se caso viéssemos a estar juntos, eu deveria ter muito cuidado, pois ela era uma pessoa muito especial. Se viesse a se entregar a mim, eu deveria compreender que tinha em mãos algo muito relevante, pois ela carregava algo de valiosíssimo dentro dela, e, eu deveria zelar por aquilo com extremo carinho. Era mais ou menos este o sentido das palavras, porém mais abundantes, e ditas de maneira extremamente grave, severa. Assustava, até. Fiquei inquieto, de certa maneira até pasmo com aquele discurso, proferido de um modo tão vigoroso, tão intenso.
     Porém, poucos dias depois – creio que se esquecendo que já havia me ditado àquilo – ela repetiu a fala, com a mesma intensidade, a mesma gravidade, as mesmas ameaças veladas. Ficou-me claro que era um discurso pronto, fechado, com vistas a enquadrar qualquer um que se aproximasse. A máscara rachou, as palavras me soaram vazias – posto que não espontâneas – e ela não serviu mais do que a distração suficiente para me livrar do que me obsedava. Logo se fechou o ciclo, creio que sem acarretar mágoas recíprocas, posto que eu, de maneira similar a ela, repeti um discurso então recorrente: não lhe prometo nada, não me comprometo a nada, vivamos um dia de cada vez, aproveitemos o bom desempenho dos corpos que nossa juventude nos provê.
     Com este enredo cínico – como não poderia deixar de ser – ela também ficou pelo caminho.


     E então os anos passaram, arrasadores.
     Olho para aquela mesma criança, já sem a inocência e sem o relógio, cabelos brancos surgentes e rugas nos cantos dos olhos, tragédias acumuladas sobre a cabeça e sobre o coração (e, fatalmente, as que se aproximaram demasiadamente também não saíram incólumes – há que se dividir tudo, especialmente o que machuca).
     Muita coisa passou, mas muita coisa ficou.
     Ficaram os sonhos da adolescência – que torturam, tanto por não serem executados, quanto por não serem esquecidos. Ficaram as cicatrizes e as mágoas, as boas lembranças e as risadas, as insônias e os remédios, a solidão dos vômitos em banheiros sujos, os gozos, as tragédias e os desencantos. O reconhecimento no espelho de suas próprias limitações, seus desvios e incorreções, seus traumas e esperanças – muita coisa decorrente dos feitos daquela época em que ainda possuía àquele relógio.
     Tudo acumulado, querendo ora explodir pela sua boca, ora implodi-lo te devorando por dentro.

     Já que (também) perdi o relógio, ¿é hora do que, agora?

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