terça-feira, 14 de outubro de 2008

Dele nascido, para ele direcionado

Vento sul assola o Espírito Santo, garoa, pego um ônibus para o terminal Dom Bosco. No terminal sento ao lado de uma mãe e um filho – este com cerca de seis anos. A criança brinca com a mãe, interage com o ambiente, mesmo sentada no banco. A mãe, inversamente proporcional a alegria e aos gestos até mesmo bastante contidos do garoto, o esmurra, o agride e grita com ele o tempo todo, como se o mesmo estivesse fazendo muita bagunça.
Estávamos sentados no mesmo banco, e aquela cena me incomodava muito. O ônibus demorava bastante, e a mãe continuava a esmurrar o garoto. Para meu espanto, a criança não chorava, tampouco se deprimia com os gestos desatinados da mãe. Ao contrário. O garoto continuava com uma alegria incontida, se divertindo, chamando a mãe para brincar, como se ela realmente não estivesse fazendo nada. Fiquei pensando, naquela cena, nos longos minutos que escorriam. Pensei, que em algum momento, mesmo àquela imensa alegria, àquele imenso prazer em brincar, iria se esmorecer. E, em algum momento, àquela criança, já cansada de apanhar, iria – mesmo sem saber – querer vingança. Não seria contra a mãe. Seria contra a sociedade como um todo. Sociedade que não deu a ela direitos, só deveres, que não deu amor, que não deu carinho, que não deu compreensão. Ao contrário. Só punição e rancor.
E eu pensei, que àquele garoto, com toda aquela alegria, que só queria brincar, quando grande, ainda viraria um pária. Viraria um bandido qualquer, um assaltante qualquer, um assassino qualquer. E, por conseguinte, vão querer a cabeça dele. Vão querer prisão perpétua. Vão querer pena de morte. E eu pensei, que ele era apenas um dado rolando no meio do destino, com muito menos poder de interferência na própria vida do que parece, pois, àqueles murros que lhe eram dados em tão pequena idade, vão marcar pra sempre, estarão no subconsciente daquele garoto, não haverá nada que os tire de lá.
Que destino, pensei. É a cadeia, é a morte, e havia tanta alegria, obstinada alegria.
Estava sinceramente magoado com a mãe, muito, mesmo, e tentava não olhar para a cena que ocorria ao meu lado. De qualquer forma, seus berros ensandecidos perscrutavam a todo o momento os mais recônditos cantos dos meus ouvidos e sair dali seria deliberadamente fugir – coisa que não me apetece em todos os casos, comumente só em um ou outro relacionamento.
Tentei olhar para ela sério, para tentar desanimá-la do que fazia. Foi quando encarei de verdade seu rosto. É engraçado, a gente vai passando pelas pessoas, tantas pessoas, e na verdade não vê nenhuma. Foi quando me dei conta de que a mãe era muito nova. Devia ter uns 20, 21 anos. E eu, que tentava aplacar minha raiva contra ela, me dei conta de que ela deve ter sido mãe com uns 14 ou 15 anos. E pensei como deveria ter sido o pai dela, se é que ela o conheceu. E, percebi como era fácil sentir misericórdia do garotinho que pode virar bandido, já que ele é tão pequeno e indefeso, mas é difícil sentir daquela que, se talvez não se tornou meliante, também não conseguiu montar uma família, não conseguiu prover o seu filho dos cuidados e do amor que ele merecia. Não passava amor para frente, talvez porque também não o houvesse recebido. Era bastante fácil culpá-la, como será bastante fácil culpar o futuro bandido, ou futuro bêbado ou futuro pai irresponsável que está sendo criado ali.

E eu, pensei sobre ter filhos, esta coisa louca, tanta responsabilidade, tantos traumas e coisas mal resolvidas em nós que passamos adiante, para eles, que sequer tem forças para suportar tal peso.
Como não pretendo ter filhos, me aliviei com a sensação de que não passaria minhas coisas ruins adiante. Morrerão comigo.

O ônibus demorou tanto, que percebi que era inútil tentar ir a aula de inglês que almejava, perderia mais da metade da aula, mudei de fila para pegar o ônibus de volta. Eram tantas as filas e tão longas, que entrei na grande serpente errada. Nesta, observei um rapaz em fila próxima, de cabelo raspado, tinha um corte formato de desenho em parte do cabelo mais ou menos deste jeito: l/l/l/l/l/, que circundava todo o seu crânio. E ele, de repente, se virou para trás, e ofereceu alguns pacotes de amendoim para os que estavam atrás dele. Normalmente um real compra alguns pacotes, ele pegou um pra ele e oferecia os outros para estranhos.
E, ali, naquela garoa fria e naquele vento forte, no meio de uma fila enorme, no meio de tantos traumas e alegrias, no meio do egoísmo e da dor, também havia altruísmo, sem nenhum compromisso, apenas o de proporcionar a alegria a um desconhecido. Ali, naquele momento, no meio da rua, no meio do povo, eu me senti em casa. Ali, naquele lugar, eu estava onde deveria estar.
Quando consegui ingressar no ônibus de volta, ao meu lado um rapaz lia um livro: “O maior vendedor do mundo”. Era um livro que eu, que tanto gosto de ler, jamais gostaria de ler. Mas ele lia, com o ônibus em movimento, não sei o que queria vender, talvez a si próprio num emprego qualquer. Estava correndo atrás, se preparando para não sei o que. Achei forte, também.
Entram duas mulheres, uma mais velha e outra nova. Dentre outros assuntos, a mais velha agradece a bondade divina pelo fato do ônibus ter parado fora do ponto para pegá-las – sem pensar em responsabilizar Deus por não terem um carro, ou por estar chovendo no momento em que estavam fora de casa. Eu logo pensei que o motorista parara por causa da chuva, e não dos desígnios celestiais. Mas ela seguiu com seu raciocínio, falou sobre o coração do motorista, em contraponto a outros, que tinham tal órgão petrificado.
E eu pensei novamente no garoto, futura estátua, de quem cobrarão coisas como se ele tivesse tido tudo, como se ele fosse um igual, quando não é, como se ele tivesse tido chances, quando não teve, como se ele fosse um culpado, quando na verdade é vítima desde já.


E, me dei conta mais uma vez, diante do garoto sem futuro, da jovem mãe, das senhoras que agradecem ao Pai Celestial por um ônibus que parou fora do ponto, pelo rapaz que tentava agradar os outros com amendoim, do rapaz que tentava ser um bom vendedor, que é para eles, e tão somente para eles, que nossas maiores ações, que nossos maiores esforços devem ser empreendidos. É por causa dessa gente, por essa tão brava gente, tão espoliada, tão sofrida, e que ainda assim consegue ser altruísta e alegre, que sou socialista. Vivo com certo conforto, não carecia pensar nisto. Mas não posso esquecer deles, do povo, esta palavra tão mal usada, dita tantas vezes com escárnio justamente por aqueles que se locupletam dele, por aqueles que sentem desprezo em estar junto a eles, que se supõem diferentes, distantes, dignos de outro país, outro ambiente, outra temperatura, até.
É por causa deste povo, sofrido e amuado, por amá-los, que, a cada dia mais convictamente, me sinto socialista. É trabalhando e ajudando este povo, que se faz a obra de Deus, é nosso dever, é nossa obrigação. Sinceramente, sendo o homem que me tornei, nem sinto opção em não ser socialista. Assim como apenas nasci homem, apenas nasci brasileiro, apenas nasci socialista. Apenas sou.
Eu não sei se minha ideologia está correta, e postulo a necessidade de se debater as antinomias da mesma. Porém, em qualquer decisão que seja tomada, de qualquer regime, de qualquer governo, ou até mesmo nas nossas decisões habituais, quando temos poder para interferir nas coisas, devemos pensar muito, muito refletidamente, no bem destes desvalidos. Porque eles precisam. E, nem mesmo eles, têm consciência do tanto que são explorados.
Para mim, pra ser sincero, é até bem fácil, pois no meio deles, sinto que estou dentre os meus.


P.S: Lá fora, debatem ajuda de mais de três trilhões de dólares (!) aos especuladores (¡coitadinhos!).
Para os que inspiraram este texto, não restam nem as migalhas.

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