quarta-feira, 17 de novembro de 2010

As fontes

Lendo diversos escritos de filosofia/sociologia ao longo do tempo, muitas vezes observo autores citando Hobbes, Nietzsche e Platão como fontes.

Bem, creio que o mérito de Platão seja o de escrever lá nos primórdios, fundando bases até então inexistentes da filosofia. Porém, hoje, a maior parte de seus escritos são anacrônicos, e posso mesmo dizer que é impressionante que tenham sobrevivido até os dias atuais (simplesmente porque não possuem tanta qualidade assim).
A caverna de José Saramago, por exemplo, remete a ideia exposta no livro A república do autor grego. O impressionante é que a obra do escritor português é muito melhor do que o livro de onde partiu a ideia inspiradora do título.

Há um conceito um tanto quanto estulto de se recorrer aos sábios de muito antigamente, como suposta fonte de sabedoria e cultura inexistentes em nossos dias atuais.
A priori deve se começar dizendo que nossa época atual é a que mais acumulou conhecimento, temos uma quantidade muito maior de informações e diversos autores que – já tendo como base os muitos autores que os precederam – começam seus escritos de um ponto muito mais avançado que os autores antigos.
O discípulo mais famoso de Platão, Aristóteles, um homem com um bom senso extraordinário, como destaca Umberto Eco no livro Previsões*, já fez claras críticas a obra de seu mestre. A partir daquele momento, um leitor ou um escritor que tivesse lido os dois, já partiria de ponto mais avançado que o do próprio Platão, que não pôde sequer conhecer toda a crítica feita a sua obra por seu próprio discípulo.
Em outros termos: não é pelo fato de uma coisa ser muito antiga, que ela é necessariamente boa.
Não digo que todo seu material escrito deva ser desprezado, ao contrário. Há, sim, boas ideias em seus textos, rememoro-me de um adágio particularmente feliz: só os mortos conhecem o fim da guerra. Porém, julgo que este exagero de tamanha quantidade de citações vem única e exclusivamente do fato dele ser um autor antigo, e por isto, considerado basilar – o que é um erro.
É evidente que há seres geniais de outrora que dificilmente serão superados, como Michelangelo, Aleijadinho ou Leonardo da Vinci. Peguemos o caso do próprio Da Vinci, que explicitará bem o que quero dizer. A beleza de suas pinturas são eternas, dado que a técnica da pintura daquela época para a de agora pouco evoluiu, e seus quadros estão dentre os melhores de todos os tempos – e permanecerão assim, creio que para sempre. Porém, suas numerosas ideias de inventos estão todas ultrapassadas. Admiramos, claro, a genialidade da pessoa que pôde imaginar coisas, das mais diversas, do pára-quedas a um escafandro, da asa delta a um tanque de guerra, mas é um sentimento com um fim em si mesmo. Suas ideias não cabem mais.
O mesmo ocorre, infelizmente, com Marx. Muitas de suas ideias são inaplicáveis hoje em dia (faltou um gênio similar ao dele para atualizar sua obra com o mundo de nossa atualidade). Grande parte de suas ideias ainda possui validade, claro, mas a base de fatos sobre a qual ele fundou o comunismo se alterou, e hoje carecemos de uma nova visão da forma como este sistema deveria ser aplicado ao mundo, de como o comunismo reagiria, por exemplo, à sociedade de consumo (Georges Burdeau em seu livro “O Estado”** postula bem este problema).

Voltando ainda a Platão, ainda há mais um problema a ser considerado. Observando as ideias de inventos de Da Vinci, apesar de elas já estarem ultrapassadas, nós conseguimos admirá-las, devido a genialidade das mesmas, bem como as ideias de Marx para seu tempo. Porém, não consigo sentir o mesmo para com Platão, posto que não vejo tal genialidade.
Platão teve oportunidades de administrar cidades consoante suas ideias, e fracassou fragorosamente em todas elas.
Não digo que ele seja um beócio a ser desprezado, só afirmo que ele esta longe de ser o gênio que alguns pensam que é: parece-me muito mais um fetiche de ficar citando quem escreveu há mais de dois mil e quinhentos anos.


Thomas Hobbes. Sua obra mais famosa é “Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil***”. Ler este livro é tarefa das mais árduas, demanda um esforço sobrenatural para concluí-lo.
O livro possui até algumas boas ideias, como a citada abaixo:
“O que imaginarmos será finito. Portanto não existe qualquer idéia, ou concepção de algo que possamos denominar infinito. Nenhum homem pode ter em seu espírito uma imagem de magnitude infinita, nem conceber uma velocidade infinita, um tempo infinito, ou uma força infinita, ou um poder infinito. Quando dizemos que alguma coisa é infinita, queremos apenas dizer que não somos capazes de conceber os limites e fronteiras da coisa designada, não tendo concepção da coisa, mas de nossa própria incapacidade”.

Porém, creio que em mais ou menos 90% das suas centenas e centenas de páginas, deseja-se explicar que, na verdade um Rei é Deus na terra. Qualquer contestação a ele seria uma afronta a Deus e aos homens. Um Rei pode tudo. Tudo que ele faz é para o bem dos homens. Mesmo uma inequivocamente deplorável atitude sua, mesmo quando tudo prova que ele esta agindo errado, há alguma explicação para tal atitude – ele jamais erra.
Julgo que só há uma explicação para tamanha perda de tempo: Hobbes era uma pessoa que desejava um cargo na corte ou algo assim. Um bajulador, um servil, um adulador, um baba-ovo, mesmo, em resumo.

Calhou que seu escrito se deu justamente numa época em que o parlamento inglês estendia sua influência e que o despotismo monárquico (que ele insistentemente defende) ia perdendo força. No fim da vida foi ficando cada vez mais esclerosado, atacado por todos os lados – mas o rei, claro, o defendia. Não podia ser diferente, com um cartapácio que é quase uma ode ao puxa-saquismo universal, o adulador de reis teve na coroa sua defesa derradeira.
No século passado, serviu sobremaneira como inspiração para os fascistas de diversos países.
Não podia ser diferente.


Por fim, vamos a Friedrich Nietzsche, o anunciador de verdades, o criador de frases de efeito. Sua dita obra-prima, “Assim falou Zaratustra” não possui nenhuma coerência em seu texto. Ao contrário, o livro é escrito para que seus axiomas soltos se encaixem em algum lugar. Como as frases não possuem muita conexão entre si, ele vai tentando inserir um contexto para o qual elas possam ter algum sentido. De fato era uma tarefa hercúlea, e diferentemente de Hércules, o super-homem de lá não consegue dar cabo delas.

Nietzsche escreve da maneira mais hermética que pode. O resultado é que é necessário um significativo esforço para compreender seus escritos. O leitor, então, se esforça, porém, quando vai assimilando o que o autor está querendo lhe dizer, de fato, o desapontamento é inevitável, posto que a forma com que ele escreve é requintada, mas seu conteúdo é fraquíssimo. Há muito mais virulência na defesa de suas ideias do que genialidade. É como entrar numa casa onde a fachada é lindíssima, e ao atravessar a porta, observar que o interior é vazio.
Nietzsche, claro, também é um conservador nato, conseguia ser fascista numa época em que ainda não existia o fascismo, um crítico da Revolução Francesa, um escritor que em seu tempo foi sumariamente desprezado – e eu sempre tenho grande receio para com estes artistas ditos “incompreendidos” pelo seu tempo. Nietzsche não agrega nada, e o fato de ter enlouquecido no fim da vida não deveria ser motivo para ele parar de escrever, dado que sempre escreveu para os débeis.


* Para ler trechos selecionados de “Previsões” clique aqui.
** Para ler trechos selecionados de “O Estado” clique aqui.
*** Para ler trechos selecionados de “Leviatã” clique aqui.

Nenhum comentário: