O primeiro filme tropa de elite foi acusado por muitos de ser um filme fascista, promotor da violência desmesurada, justificador de execuções policiais, etc. Muitas destas críticas vieram do espectro político da esquerda, porém, eu não concordava com elas, dado que não me parecia propriamente uma apologia de métodos policiais mais agressivos, e sim sua constatação.
O diretor do filme, José Padilha, dentre outros, já havia lançado duas películas que passaram desapercebidas pela maioria das pessoas que o criticava, uma denominada Fome, onde discorre sobre a trajetória de uma família mineira e a forma como sua miserabilidade a afeta em seu cotidiano, e o documentário Ônibus 174, sobre o sequestro do referido ônibus por Sandro do Nascimento, o “Mancha”, o execrado bandido, àquele, que o pai abandonou a mãe quando soube que ela estava grávida dele, que viu a mãe ser assassinada na favela onde morava, que foi morar então, na rua; que se viciou em drogas, que dormia na Candelária e não foi morto naquela chacina por puro acaso, que era analfabeto, que sequestrou o veículo e assassinou uma professora grávida durante sua ação – e, como é consabido, acabou sendo executado pela polícia no caminho para a delegacia.
Estes dois filmes, a despeito do pequeno público que então obtiveram, ao contrário de tropa de elite, atraiu críticas da direita.
Creio que quando uma pessoa consegue desagradar os dois lados do espectro político sem ser niilista, há de se dar um valor ao que se está sendo dito. Ponto para o Padilha.
O segundo filme tropa de elite é muito mais bem feito que o primeiro: a produção, o roteiro mais cerebral, todo o filme é melhor, mas não é por isto que aqui escrevo. A película tenta, de maneira mais clara que o antecedente, elucidar as origens da criminalidade – e vai longe.
Relembro de um conceito do Mino Carta: “¿o que seria do crime carioca se não fosse a polícia carioca?”. Em outros termos, o crime imiscuiu-se junto a polícia de maneira tão carnal, tão intensa, que não sobreviveria sem a polícia. Depende da sua da anuência, da sua omissão, da sua corrupção, da facilitação por parte da força combativa do estado para que ele possa ocorrer em (santa) paz – e até para ajudar no combate a determinados inimigos.
Os trechos em que o filme se debruça sobre as milícias, por exemplo, são fenomenais (abro um parêntese para dizer que as milícias são a prova inequívoca de que o crime no Rio de Janeiro não é tão difícil assim de ser resolvido, basta querer – se os milicianos conseguem tomar conta dos morros, ¿por que a polícia não o faz?).
O filme também mostra a ligação de políticos estaduais com o crime – de maneira mais intensa alguns deputados, de maneira mais “sombreada” o governador Molequinho.
Porém, no fim do filme, mostra-se um deputado federal que também fora ligado ao crime no estado do RJ e conseguiu ser eleito no pleito federal, e apresenta Brasília (mais especificamente o congresso nacional) como a própria fonte originária das mazelas da criminalidade.
É bastante extensa a crítica que se poderia fazer a este trecho. Decerto que os deputados não contribuem para a resolução (na parte que lhes cabe) do problema da segurança pública. Creio eu – com minhas limitações – que a maior contribuição que os deputados e senadores poderiam dar seria a simplificação da aplicação das leis brasileiras, a diminuição dos mil e um recursos que advogados espertos conseguem impetrar para protelar decisões judiciais, que fazem com que, por exemplo, Pimenta Neves, o ex-diretor do jornal O Estado de São Paulo e assassino confesso da jornalista Sandra Gomide (para ler sobre este crime aconselho a bela obra “O voo da rainha”, do já falecido escritor argentino Tomás Eloy Martinez), permaneça impune anos e mais anos, ou mesmo que um Maluf da vida prossiga por aí, jactando-se de santo ainda por cima (dentro do Brasil, porque se pisar fora será preso pela Interpol).
São contribuições significativas (e existem outras inúmeras, evidentemente, como a polêmica redução da maioridade penal para crimes hediondos) que o congresso poderia realizar, mas devido à sua imobilidade característica, não o faz.
Daí a justificar que o crime no Brasil tenha como origem Brasília ou o congresso nacional, lá vai uma grande distância.
Creio que neste aspecto o filme apela para o aspecto moralista fortemente reinante na sociedade brasileira – fato evidenciado nas últimas eleições. Apela para a origem de todos os problemas do Brasil como sendo originário dos corruptos, ladrões e safados que estão em Brasília. Eles existem lá, não tenho dúvida, porém não creio que sejam todos, aliás, nem que sejam a maioria.
Bem, por já ter morado no Rio de Janeiro, diversas vezes observei esta especie de “abstração imaginária” que Brasília representa para aquele estado – fator agravado, creio eu, pelo fato do governador Molequinho vincular os problemas daquele rico estado a suposta falta de apoio do governo federal – este referido governador não conseguia sequer atravessar a rua sozinho, necessitava de apoio do governo federal para fazê-lo.
Parece que todos os problemas do mundo se resolveriam num estalar de dedos se Brasília quisesse resolvê-los. Muitas vezes ouvi lá, também, que se a capital não tivesse sido transferida para o centro do Brasil, que se ainda fosse no Rio de Janeiro, as coisas seriam diferentes, que eles pressionariam mais, que os políticos realizariam mais, até por medo da população enfrentá-los.
Devagar com o andor, meu amor.
Creio, sim, que há um excesso de poder (e lobby, por conseguinte) concentrado em Brasília. Porém, também há um excesso de poder concentrado no Rio de Janeiro (basta lembrar, por exemplo, que 80% da marinha brasileira esta situada no RJ – pode-se afirmar que o Brasil não possui marinha, apenas o RJ a possui).
Se a capacidade crítica e mobilizadora do estado fluminense fosse assim tão significativa, eles não teriam elegido o próprio Molequinho como governador, e pior, eleito depois sua esposa para seguir desgovernando o estado. Se esta capacidade de movimentar os políticos, de protestar, de pressionar fosse assim tão elevada, os Maias da vida não teriam ficado tantos anos na prefeitura da capital, tampouco seu filhote teria vez na política. Também Eduardo Cunha (esta chaga maldita) não seria reeleito tantas vezes deputado federal, e o poder público não teria deteriorado a tal ponto de permitir que a cidade ornada de tantas belezas naturais hoje se encontrasse suja, velha e fétida.
Não faço esta crítica com vistas a caluniar a porta do Brasil que é o Rio de Janeiro, muito ao contrário. O estado do Espírito Santo vive o mesmo problema – tanto lá como cá já foi pior, friso –, elegeu políticos impressionantemente ruins: José (“tem que rapar o tacho”) Ignácio, José Carlos Gratz e seus 30 otários, José Carlos da Fonseca Júnior, Élcio Álvares, dentre outros tantos. Nas próprias eleições presidenciais, por exemplo, ¡no Espírito Santo José Serra ganhou (por cerca de 1 ponto percentual, é verdade) de Dilma Roussef! É impressionante, claro. A despolitização é um mal que grassa no país - e o PT no poder não conseguiu combatê-la, ao contrário, agravou-a. Porém, seria bastante conveniente ficar de cá culpando tudo que acontece com o Espírito Santo como sendo de responsabilidade de Brasília: não é. Tampouco é verdade que todas as misérias reinantes em nosso país sejam oriundas da corrupção ativa – acho, ao contrário, que a maior parte da tragédia brasileira tenha como origem não aquilo que é corrupção ativa, clássica, mas sim a corrupção moral.
Façamos uma digressão recuando no tempo. O então presidente João Goulart apresentou no congresso e conseguiu fazer aprovar a lei de Remessa de Lucros. Esta lei obrigava o capital estrangeiro a expatriar, no máximo, 10% do capital que introduzissem no Brasil. O resto deveria ser reinvestido aqui – uma lei altamente nacionalista. Os militares pseudo-patriotas derrubaram o presidente constitucionalmente eleito. ¿E o que fizeram com a lei? Caçaram-na. Claro, uma das justificativas do golpe era para defender o país. Que “bela” ironia, ¿não?
Venhamos para caso mais recente, já da era neoliberal. Peguemos o caso do PROER (Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Sistema Financeiro Nacional), criado no governo FHC, assinado pelo então ministro do planejamento José Serra. Este programa visava salvar aqueles que não podem se dar mal: os banqueiros. Um exemplo significativo das benesses do programa é o caso do Banestado (que viria a ficar famoso também pelas CC-5), então banco estadual do Paraná, que recebeu 5,2 bilhões de reais do governo federal para ser “saneado”. Em seguida, o banco foi privatizado por 1,5 bilhões de reais, sendo que ainda tinha, afora o patrimônio original mais o aporte recebido, 1,6 bilhões de reais de crédito a receber (tudo em valores da época, hoje seria muito mais)
Esta obra prima de nossos queridos membros do PSDB não é corrupção, claro, longe disso. Não pra eles. (aliás, quantas vezes, nobre leitor, você já ouviu falar deste caso nos grandes veículos de comunicação?)
Nem me estenderei em falar sobre a doação da Companhia Vale do Rio Doce (clique aqui para ler mais sobre o assunto), que em poucos meses pagou o valor pelo qual foi privatizado. Outro caso clássico de corrupção moral.
Não é, em minha singela opinião, pelos desvios e roubos diversos que o Brasil (ainda) não é o país com o qual sonhamos. É sim por causa da corrupção moral que ainda não alcançamos o local onde deveríamos estar. As duas devem ser severamente combatidas, claro, mas uma é muito mais nociva, de efeitos muito mais amplos que a outra, não tenho dúvida nenhuma.
E ao se vincular a um moralismo mais venal, justificando tudo em Brasília de maneira generalizada, àquela corrupção clássica, o filme se presta a um desserviço, porque por um lado, não focaliza no inimigo mais contundente, e por outro, presta-se a justificativa para qualquer desvio moral dos demais cidadãos.
Em outros termos: quando nós ficamos a depositar em cima de TODOS os políticos as mazelas que ocorrem em nosso país, a vinculá-los todos à corrupção, à intriga, à safadeza e ao crime de maneira ampla, nós atentamos contra nós mesmos. ¿Por quê? É simples. Ora, se o político rouba, ¿por que eu não posso roubar também, levar aquele carro, aquela moto, limpar aquela casa? Se o político rouba,¿por que eu tenho que pagar imposto? Se o político rouba, ¿por que eu tenho que pagar multa de trânsito, não posso dar uma caixinha para o guarda? Se o político rouba, ¿por que não posso fumar um baseado? Se o político rouba, ¿por que eu que sou policial, não posso ganhar uma ajudinha pra complementar meu soldo ridículo? Se o político rouba, eu que sou juiz, ¿por que não posso vender uma sentença? Se o político rouba, eu que sou professor, ¿por que não posso aceitar esta molhada de mão do pai do aluno para passá-lo de ano? Se o político rouba, eu que sou dono de posto de gasolina ¿por que não posso batizar o combustível pra ganhar uma graninha a mais? Se o político rouba, eu que sou fornecedor do estado, ¿por que não posso entregar 90 unidades do produto de qualidade duvidosa quando me compraram 100 de boa qualidade? Se o político rouba, ¿por que eu, que sou dono de ferro velho, não posso furtar uma tampa de bueiro? Se o político rouba, ¿por que eu, que não tenho dinheiro pra comprar minha droga, não posso ir ali roubar o fio da empresa telefônica? Se o político rouba, ¿por que eu não posso pegar a internet ou a TV à cabo através de um “gato”? Se o político rouba, ¿por que eu, que sou flanelinha, não posso exigir o pagamento de dinheiro para “vigiar” um carro – e arranhar o veículo de quem se recusar a me pagar? Se o político rouba, ¿por que eu não vou dar preferência pra um conhecido meu, ao invés de dar para quem enfrentou esta longa fila? Se o político rouba, ¿por que eu, que sou funcionário público, vou trabalhar direito, pra eles mamarem mais? Se o político rouba, ¿por que eu que sou pastor não posso pedir uma contribuição mais recheada dos meus irmãos? Se o político rouba, ¿por que eu que trabalho no Detran e ganho muito menos que eles, não posso liberar uma carteira de trânsito sem a pessoa passar na prova se alguém me der uma ajudinha? Se outros políticos roubam, ¿por que eu, que consegui virar político, não vou roubar?
Andando assim, no fim das contas, todo mundo é passado para trás, todo mundo é mutilado dos seus direitos, todo mundo sai perdendo.
Observo que muitas vezes Brasília é tão e tão somente um álibi fajuto. Nada mais, nada menos que isto.
Um comentário:
Pois é, Doney, os políticos são espelho daqueles que os elegem. É verdade, nem todo mundo elege calhordas porque apóia a calhordice (alguns fazem por ingenuidade), mas nos estados e municípios é impossível a população não saber do que são capazes os seus candidatos. Assinamos embaixo dos mandatos dos corruptos e somos altamente desconfiados com quem aparece com idéias novas. Orçamento participativo? Sessões itinerantes? Fiscalização cidadã? Então eles ganharão tão bem para nos tirar do nosso comodismo de não querer saber como funcionam as coisas? Só assinar embaixo está bom demais.
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